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Uma história de gentileza e grandiosidade

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Antes da metade do século passado, o xadrez não era um esporte muito popular no ocidente. Apesar de transmitido aos europeus no Renascimento, ele era especialmente popular na Rússia, Armênia, Hungria e outras repúblicas soviéticas, além da Polônia e Iugoslávia.

Depois da Segunda Guerra Mundial, começaram os primeiros torneios mundiais oficiais de xadrez. O primeiro torneio de desafiantes em 1950 contava com Botvinnik (o primeiro “grande mestre soviético”), Bondarevsky, Boleslavsky, Bronstein, Kotov, Smyslov — quase todos soviéticos! As poucas exceções ao leste europeu vinham da Suécia, Holanda e Estados Unidos, com Reuben Fine.

Foi só na década de 70 que Bobby Fischer entrou em cena para fazer pressão nessa balança.

O campeonato mundial de 1972 pôs Bobby Fischer, então o mais jovem campeão norte-americano, de frente com o grande mestre soviético Boris Spassky. O conjunto de partidas em que se enfrentaram ficou conhecido como “o jogo do século XX”, a maior demonstração de habilidade enxadrística e um símbolo da Guerra Fria no esporte.

Fischer já havia desafiado Spassky antes, e nunca havia conseguido derrotar o soviético em uma partida sequer. Na sequência do mundial, o norte-americano perdeu as duas primeiras partidas, e na terceira negou-se a jogar em frente às câmeras e à plateia. Fischer tinha um comportamento excêntrico e problemático. Primeiro recusou o local da disputa exigindo um aumento no valor do prêmio. Também exigiu exclusividade do uso da piscina do hotel em que se hospedou. Era rebelde e intransigente, e além de tudo, antissemita, profundamente anticomunista e detestava a União Soviética. Isso se explicava provavelmente por um ressentimento contra sua mãe, que era judia, comunista e simpatizante dos russos, e não havia sido muito presente em sua infância, sempre envolvida com o ativismo político.

Foi nessa ocasião em que o campeonato mundial ficou ameaçado (o russo venceria automaticamente), que, contrariando as expectativas do mundo todo, Boris Spassky fez a maior demonstração de gentileza e dignidade no esporte. Ele chamou Fischer para jogarem num quartinho na sede do local onde ocorria o campeonato, sem câmeras e com a presença apenas de um juiz. O norte-americano aceitou e venceu a partida. Perdeu a seguinte e na sexta partida aceitou jogar sem câmeras, mas já em frente à plateia, derrotando mais uma vez o soviético. Quando Spassky abandonou a partida, derrotado, toda a plateia aplaudiu de pé e o soviético juntou-se ao coro.

Fischer tornou-se campeão mundial naquele ano e uma celebridade instantânea. Depois do título, no entanto, passou vinte anos recluso sem jogar uma partida competitiva sequer. Só voltou em 1992 para a “revanche do jogo do século” novamente contra seu maior adversário Boris Spassky.

O jogo ocorreu na Iugoslávia, país embargado pelos Estados Unidos. Bobby Fischer se apresentou contra a orientação do governo e foi ameaçado por George Bush (o pai). Foi à televisão iugoslava de prêmio na mão e disse “esta é a minha resposta ao presidente”. Então tornou-se ilegal e passou a viver como exilado, primeiro na Hungria e depois nas Filipinas.

 

Em 2004, já aos 61 anos de idade, Fischer tentou entrar no Japão, mas teve seu passaporte recusado e ficou meses preso aguardando a extradição. Então, alguém apareceu para defendê-lo. Boris Spassky, seu adversário da vida toda, apelou publicamente ao presidente Bush (filho) que libertasse Fischer, e se ofereceu para ser preso na mesma cela do velho amigo, desde que eles pudessem jogar xadrez.

O apelo foi ouvido pelo governo da Islândia, palco do campeonato de 1972, que concedeu asilo a Bobby Fischer. Ele passou lá os 4 anos seguintes até sua morte em 2008.

“Nós éramos como bispos de cores opostas.” (Boris Spassky)

por Victor Tufani

1º de maio de 2019

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